TP 176

a lareira crispa lentamente bocados de lenha que eu incendiei, porque senti nos ossos que uma noite chuvosa se aproximava. enquanto ouço o som cadenciado das chamas que me aquecem ao de leve a face, lembro-me do que a tua presença era para mim. a tua face arredondada, marcada por dois olhos negros e vivos que nunca paravam, traziam me à ideia um mundo onde as pessoas estavam viradas para esse mundo e dele tudo queriam receber. apetecia-me sempre ser assim.
conversámos, pela ultima vez, antes do embarque para o voo tp 176, com destino a caracas, se bem que, lembro-me agora, gostava que o destino fosse karachi, noutra parte do mundo, por me parecer muito mais misteriosa ou simplesmente distante. mas quem ia viajar eras tu... falavas calmamente, como se as palavras desde sempre lá tivessem estado, não na tua cabeça, ou na tua garganta, mas naquele sítio, naquele aeroporto e naquele dia. era esse o teu poder: o de agarrares as palavras do momento e do local como se fossem uma mera manifestação da sua alma, onde tu te integravas completamente. afinal tudo tem uma alma.
nunca me disseste o que ias lá fazer, não eras homem de negócios, não tinhas lá família e que eu saiba nunca gostaste do climas tropicais, pelo seu excesso de humidade e temperamento. mas também não te perguntei. a nossa amizade existiu da mesma forma como começou: numa barraca de cerveja numa festa aparentemente religiosa, mas para nós profundamente pagã, onde eu servia ao balcão e tu apareceste com uma sede para além da mera garganta seca. a conversa obrigou-me a passar para o outro lado do balcão e desde aí nunca mais acabou. a tua vida foi diferente da minha, cada um seguiu aquilo que pôde ou que quis, sem alterar o que já tinha começado.
agora, não sirvo em barracas estudantis onde quase exclusivamente se vende cerveja, agora, um check in parece-me algo profundamente demorado e aborrecido, agora, a vida tem para mim outros padrões que, com certeza, foram sendo redesenhados pelo aproximar de outra idade. mas ficou esse gosto de ler até os olhos rasparem nas pálpebras de tão secos e cegos que estão e todas as vezes que acabo um livro apetece-me falar te desta ou daquela personagem que fez feitos tão épicos como nunca antes tinha lido, ou viveu sentimentos tão arrepiantes que nem encontro palavras para bem os descrever, ou o narrador que tem uma arte tal para contar a sua história que me transportou de novo ao tempo onde os relatos das histórias eram familiarmente importantes. enfim, meu amigo, já li mesmo alguns livros e nunca mais te disse nada.
encontro-me fora, num país e numa cidade que em muitos livros já apareceu e até tu já aqui estiveste e, quer queiramos, quer não, neste momento, aqui continuas a encontrar-te, porque estou a falar contigo e de nós.
sei também que desde essa tua viagem, muitas outras fizeste e ainda não regressaste a casa, mas é bom saber que tens casa para voltar, pois é aí que nos está a alma. eu tenho dado descanso à minha, ainda que também já tenha a minha parte nesse tipo de viagens, agora faço outro tipo de viagens, ainda que não mais reconfortantes.
soube que provavelmente não voltaremos a falar. mas quero que saibas que haverá sempre uma lareira numa noite de inverno para acabar ou começar mais um livro, mais um motivo para nos reencontrarmos, seja lá isso o que for, pois estamos num tempo em que isso já não é o mesmo.
tenho comigo uma Duas Quintas e, tal como combinámos, vou brindar a ti, companheiro. até um dia, R.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home